a barba, o espelho, o relógio
a badalada do relógio ecoou pela casa. havia dois anos que o barulho só existia na memoria das pessoas que viviam ali. antes de ir embora meu avô sabia que ninguém mais cuidaria daquele relógio. sabia que o tempo que o relógio contava era o dele. antes de ir, pediu que o filho tirasse a barba - cultivada havia 30 anos - para vê-lo e reconhecer-se jovem nele, uma última vez. o rosto azulado do filho sem a barba, refletia o pai e a mim. Ao mesmo tempo revelava um homem que ninguém (re)conhecia. Ninguém mesmo. Ouvir aquela badalada era ter a sensação táctil da presença do pai que havia parado de existir no tempo daquele relógio. Hoje estou aqui, e continuo levando no rosto, na alma e no caráter, este homem que acaba de saber o que é viver 60 anos. Na fotografia, a imagem é a do reencontro com a memória táctil do pai, vista por mim. Até na fotografia, o rosto sem barba teima em refletir ao pai e a mim. Espero que o tempo continue me devorando, mas permita que eu siga encontrando este espelho por muitos e muitos anos, em imagens que habitam fora e dentro de mim.