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CARTA DE NATAL ABERTA A TODOS QUE AMO. Queridos familiares, amigos, companheiros de vida, co-educadores da Maria Luiza e da Cecilia, (e/ou a quem interessar possa...) Na última semana conversei com a Maria Luiza e com a Cecilia, embora ela ainda não tenha como atingir a totalidade do conteúdo da conversa, sobre separar brinquedos para doar no Natal. Este é o segundo ano que convivo com a questão de ser mãe de duas crianças que ganham brinquedos em outubro (dia das crianças), dezembro (natal), janeiro (aniversário da Malu) e fevereiro (aniversário da Cecilia). Estou vendo o natal e os aniversários se aproximando e imagino que alguns de vocês estejam pensando no que dar de presente às pequenas. Talvez alguns já até tenham providenciado as lembranças de natal (e peço em especial a estes, que leiam esta carta coma tranquilidade de saberem-se muito amados por nós. Todo o amor de vocês pelas crianças é bem-vindo, assim como as maneiras pelas quais vocês venham a expressa-lo.) Após a conversa, Malu entendeu que poderia dar a outras crianças os brinquedos que ela não costumava utilizar. Passamos a noite olhando um a um. Ela foi dormir e eu fiquei até o amanhecer organizando tudo e refletindo sobre o que eu estava encontrando por ali. De tudo o que havia naquele quarto algumas coisas mexeram profundamente comigo. A partir dessa experiência, resolvi escrever esta carta de amor para as minhas filhas e para os que a cercam, a respeito destes tão esperados presentes (ambas já escreveram suas cartinhas ao bendito Nicolau, vulgo Papai Noel.) Peço que “ouçam” estas palavras aqui escritas com a mais profunda amorosidade. Quem não tiver tempo para ler tudo, pode ler só os tópicos, mas quem se dispuser a ler tudo, eu ficarei grata pela legitimidade da preocupação para com todas estas questões que envolvem além de “Balu & Cookie”, outras crianças e seres ao seu redor. Dentro do quarto éramos eu e... 1. A quantidade de plástico Plástico não tem cheiro, faz com que tudo tenha a mesma textura, o mesmo brilho, a mesma não-temperatura, a mesma falta de peso, a mesma falta de sabor, emita o mesmo timbre de som. Crianças em idade de altíssimo desenvolvimento cognitivo precisam de variedades de matéria para desenvolver o cérebro, a percepção sensorial, motora, emocional, desenvolver amplamente seu repertório de sabores, aromas, temperaturas, texturas, sons. Todos se queixam da “apatia” e “indiferença” das novas gerações... Há muitas possíveis razões, mas coincidentemente 99.9% dos brinquedos são de plástico e estão sendo muito eficazes na redução e absoluto achatamento das potencialidades cognitivas naturais das crianças. Estes brinquedos são relevantes para a formação da criança, mas não devem se tornar maioria esmagadora. O plástico deve constar como um dos elementos de uma paleta variada de materiais diversos. A proposta aqui é a seguinte: o exercício do “não-plástico” ou a integração do plástico com outros materiais. Madeira, massa de modelar, tecido, metal, sementes, argila, terra, pedras, borracha, papel, livros, coisas que emitam sons, que tenham diferentes temperaturas, sabores, kit de culinária (feito por vc mesmo), de jardinagem (idem), música, instrumentos. Ou então algo não-material como um convite para leva-las a uma peça de teatro, ao cinema, a um show, a um pic-nic, parque de diversões, andar de bike, uma tarde de brincadeiras em casa... Enfim... são infinitas as formas de presentar uma criança com algo realmente inesquecível: a sua presença na vida dela. Emoticon smile 2. As cores e os brinquedos que não tem sexo Na arrumação, sob pilhas e pilhas de bonecas, encontrei carrinhos e Cecilia os transformou em uma família com quem ela anda convivendo. Aqui em casa existe BRINQUEDO DE CRIANÇA. Se o brinquedo “se julga” como só de menina ou só de menino, provavelmente trata-se de alguma produção cultural equivocada em relação às questões de gênero. Somando as Princesas da Disney, às caixas de Barbie e Monster High eu me pergunto: por que uma criança de 04 anos e outra de 01 precisam desde já entrar em uma programação mental acerca de um suposto conceito (equivocado) de universo feminino: conceito (dispensável) de corpo perfeito, sensualidade, curvas, mini-saias, sapatos de salto... Pra quê tantos dados de mulher-objeto aos 04 anos de idade? As cores preferidas delas são rosa, roxo e azul, mas eu adoraria que elas desenvolvessem uma boa capacidade perceptiva de variações de toda e qualquer cor. Quero deixar claro que nada está proibido, assim como nenhuma cor, apenas peço que reflitam com carinho sobre estas questões aparentemente sutis, porém recheadas de densidades... Vamos adorar receber todas as cores na nossa casa e contar com a sua ajuda para isso. Emoticon smile 3. Os produtos culturais e seus tentáculos invisíveis Nada contra as princesas – mentira, algumas coisas sim... – inclusive cresci amando todos os filmes da Disney e sei todas as músicas de “coeur” e adoro cantar bem alto! Mas, para o aniversário de 05 anos, Maria Luiza me pediu que sua festa fosse “de Ariel”, e o diálogo seguiu: - Que legal, filha! Pode ser sim, um aniversário de “Fundo do Mar” e, se você quiser, você vai de Ariel! - Não, meu aniversário não é “de Fundo do Mar”, é “de Ariel”! - Mas filha, a Ariel mora no.....? - Mãe, a Ariel mora na Disney!!!! (em tom de “acorda, mãe!!!!”) (Silêncio estarrecedor..............................................) Então é isso?! A Mônica não mora mais no bairro do Limoeiro, mas no shopping SP Market... Emília não mora mais no sítio no Pica-Pau Amarelo, mas na Ri Happy. Imaginário pra quê se ela pode ocupar sua pequena mente com nada além de consumo? Paro por aqui nesta questão “cultura X consumo” porque ela mora dentro do meu calo e isso aqui vai virar uma tese que não encontra espaço nesta carta. (Quem sabe em uma próxima?) As crianças não estão nem estarão proibidas de entrar em contato com isso, mas percebi que tais artigos Disney estão em todos os cantos nossa casa, ditando regras silenciosas das quais eu e o Vinicius discordamos. A questão é que existe uma diferença muito grande entre Produto Cultural e Lavagem Cerebral. Você assiste um filme e entra em contato com uma obra e seu universo imaginário. E era isso, nada além disso, o que eu consumia quando eu era criança. No quarto delas, me deparei com cacarecos de todas as espécies oriundos da marca Princesas da Disney͇: maquiagem, canetinhas, bolsas, cesta de pic-nic, acessórios, jogos de quebra-cabeça, cartas de baralho, e etc etc etc etc etc etc etc (muito mais etecéteras do que eu gostaria). Embora eu reconheça que o discurso venha mudando nos contos mais recentes sobre princesas (ponto pra Ana, Elza e Merida!!!), olhei para cada um destes artigos que diziam em silêncio para as minhas filhas sobre um modelo de feminilidade do qual eu discordo; sobre a resolução de todos os “pobremas” existenciais da vidinha delas a partir de um casamento por amor, com um homem rico, e tantas outras coisas... Enfim... tudo isso para lhes pedir que nos ajudem – assim como com o plástico e as cores – a não fazer com que isto se torne uma hegemonia dentro de casa. Percebi que isso vem acontecendo aos poucos, e sim vem influenciando as concepções da Malu acerca de sua jovem existência como menina. A proposta é contribuir para que as pequenas se aceitem em sua natureza, naturalidade, espontaneidade e peculiaridade, sendo livres para criarem elas mesmas seus próprios paradigmas. Emoticon smile 4. A quantidade de coisinhas bobas que eu mesma havia comprado só porque era tão baratinho... Eu adoraria que as pequenas entrassem mais em contato com as várias questões culturais e sabedorias milenares oriundas da China, mas até agora o que rola é a escritura “made in China” na superfície de todos os cacarequinhos comprados com o pensamento de “que coisinha legal! não custa nada levar um desses pras crianças...”. Tenho pensado sobre a necessidade de integrar a prática do consumo consciente a cada gesto meu. De onde veio isso? A esse preço? O quê ou quem está por trás disso? A questão é ter a consciência de que quando escolhemos um produto, não escolhemos apenas um produto, mas optamos (e viva a democracia!) por financiar um esquema que envolve recursos naturais, mão-de-obra, fabricação, transporte, distribuição, venda, consumo e o descarte daquele resíduo. O lance passa muito longe da ideia de que “se é barato não presta”, pois um saco de argila na feira custa de R$1,00 a R$2,00 e muita brincadeira incrível, estimulante, formadora e inesquecível pode sair dela... Emoticon wink 5. Todo aquele resíduo produzido, consumido, acumulado, e o futuro do meio-ambiente: Sentada no quarto, em um determinado momento, me deparei com toda aquela matéria-prima não-renovável que estava estática dentro da minha casa e que levará centenas ou milhares de anos para se desintegrar. Era petróleo –e todas as guerras em torno deste - misturado com trabalho escravo e poluição ambiental. A ideia de felicidade vendida diariamente às minhas filhas, está custando muito caro à muitas outras vidas. Sem contar com a percepção da somatória do tempo de trabalho de cada um dos que as presentearam. Aqueles brinquedos não foram comprados com “dinheiro”. Foram comprados com o precioso tempo da vida dos que eu amo. Tempo dedicado ao trabalho e convertido em moeda. Eu realmente pensei em todos e desejei que fossem menos obrigados a trabalhar, e que pudessem estar mais voltados a viver a vida com mais qualidade e tempo para si mesmos e para estarem com as pequenas, contribuindo com a formação delas através de seus pensamentos e gestos. 6. Toda aquela energia acumulada podendo circular entre outras crianças Semana passada a Cecilia se apaixonou perdidamente por uma boneca da coleção de sua bisavó –a nossa amada Bisa Dêda. Trouxe para casa e está “cuidando” dela tanto quanto ou melhor do que eu mesma cuido da própria Cecilia. Já a vi ganhar várias bonecas, mas nenhuma foi tão arrebatadora quanto esta. E veja só... não estava em uma loja, nem chegou em uma embalagem, muito menos havia papel de presente. A partir desta experiência, separei alguns brinquedos para repassar às minhas outras crianças (de todas as idades, né Lise?) da minha vida neste Natal. Vai que um brinquedo que nem tinha “ibope” aqui se torna uma companheiro de vida toda para filhos e netos? Então uma das possibilidades aqui para as meninas é aquele brinquedo, livro, objeto, etc., que está inteiro, que o seu filho(a) ou sobrinho(a) não usa, e pelo quais você acredita que elas possam ser estimuladas a desenvolver algum aspecto sensorial, cognitivo, emocional, educativo, constitutivo... Aqui eles ganharão novas leituras e serão novos estímulos. Emoticon smile Bem, depois de toda essa viagem em uma só madrugada, fui dormir. Um turbilhão na cabeça, com o sol começando a entrar no quarto por entre as frestas das janelas e portas, anunciando que mais um dia de educadora e de processo criativo de dois seres humanos estava pra começar na minha vida. Assim sendo, a escrita desta carta de amor é um desabafo. Da criança que eu fui e sou; da mulher que vive nesta sociedade tão desigual e opressora; da mãe que eu tento tanto aprender a ser; da cidadã que se preocupa com os rumos políticos e sociais; da trabalhadora que espera poder se entregar profissionalmente aos seus propósitos existenciais, para contribuir para uma sociedade na qual crê, podendo trocar seu esforço por alimentação saudável, educação e cultura para as filhas; do animal que não quer ver as crias sofrerem em um planeta que as colocará em extinção, caso a humanidade não lute arduamente para modificar os seus hábitos de vida e consumo; do indivíduo que se formou a partir da combinação de todas estas e tantas outras que habitam e habitarão em mim. Por fim, desejo que todos tenham um fim de ciclo marcado pela presença, com abraço apertado e demorado, daqueles que preencheram a sua vida com leveza, cumplicidade, lealdade, amorosidade e momentos de alegria. Que o novo ciclo que está para ser iniciado seja construído, diariamente, com o nosso melhor e com a ajuda dos que amamos. O resto será somente o resultado disso. Emoticon heart Com amor (de mãe), Ju “Se você não se encaixa no mundo em que nasceu, então você nasceu pra ajudar a criar um novo mundo.” (não faço ideia de quem escreveu esta frase, mas agradeço à minha cunhada Priscilla, que me enviou; ao Vinicius, meu companheiro que sempre me apoia na nossa empreitada de criar novos mundos pra que as nossas filhas tenham mais possibilidades de exercer livremente a humanidade inerente a elas; e ao meu “terceiro-olho”, Regina, por sempre me alimentar de tantos possíveis novos mundos e sonhos...; à Larissa, minha prenha que desde já está comigo inquieta pelo mundo que seu bebê terá pela frente; e ao meu cumpa Felipe, pelas conversas sobre futuros de um mundo que me assombra e fortalece; e à minha querida Nivia, que me apoiou e auxiliou na empreitada de escrever esta carta de amor.)