top of page

sob o pelo da ovelha


sob o pelo da ovelha que pasta no campo, sob o algodão que um dia esteve ao vento no campo, sob a seda tecida pelo bicho ou da fibra vagabunda que nós concebemos sinteticamente com matérias milenares, estão meus pelos tesos, meus poros abaulados, minha pele ressecada, meus músculos contraídos, minhas veias comprimidas e meus ossos a ranger e tremular.

Inverno.

vim de um lugar onde a natureza se eximiu de cumprir esse fenômeno. 365 dias de calor tórrido e umidade fértil. musgos gerados pelo ar e árvores paridas por fezes de aves em vigas de concreto, cimento, barro ou madeira. nascer longe do chão e longe do céu. terra de raízes aéreas.

saí de lá há tantos anos que quase já estou mais aqui do que lá. de nada adianta. impossível me fundir ao frio com prazer. pra mim, há uma certa violência banalizada, silenciosa e cotidiana do ar gelado contra o meu corpo. contra a minha alma.

aos poucos vivencio fisicamente os fonemas da palavra definhar.

pijama o dia todo. nudez é espancamento curado pelo chuveiro que despenca uma água que arde, formiga minhas extremidades e faz correr pelo ralo a camada protetora invisível e fétida que meu corpo expurgou com as horas que me atravessaram em movimento inerte enquanto eu tentava me manter em inércia estática. repouso de vivacidades para deixar que as turbulências internas sejam sentidas e emerjam nos pensares que serão esquecidos dalí a breves instantes deixando somente seus lapsos.

a cada ano o inverno chega e demite as minhas folhas, minhas razões, minha vaidade. tudo resseca e eu me deparo com a revelação das minhas estruturas esqueléticas. deflagradas estão minhas topografias e é então quando se torna possível enxergar meus abismos com suas obscuridades. o ego segue com sua função burocrática de reprovar essas paisagens que não são belas. opaco. ele sente repulsa pela opacidade que me toma. a cada inverno me olho no espelho para admirar a morbidez da morte lenta que é o viver. a pele já se sabe um pouco mais folgada. os leitos da minha testa já sabem mais sobre o que vem a ser erosão. o ornitorrinco feminino foi ensinado que belo é a estética-objeto-de-desejo, mas que ser mulher de verdade é desconstruir tudo isso sem deixar de arrancar os pelos, cobrir-se com pigmentos e químicas que forjarão em você qualquer coisa, contanto que pouco sobre do que você realmente é. a alma encara fixamente o espelho, observa seu suporte e devaneia sobre variações arquitetônicas aleatórias, temporais ou com as ilusões do que inventamos ao redor do termo atemporal.

só que no inverno, mesmo sob o pelo da ovelha que pasta no campo e minha pele ressecada, a alma está sempre nua. uma nudez explícita. pornográfica. grotesca. frágil. desidratada. com algumas fraturas expostas e todas as aflições que estas costumam emanar. estamos no meio de agosto. e a primavera com todo o seu erotismo de transformar as matas em florestas de genitálias multicolores, começa a soprar a chegança de novas eras. a hibernação foi longa demais pra mim este ano, mas o torpor inerente a ela foi necessário para que eu atingisse toda essa sobriedade de me conectar com meus abismos. sinto que logo estarei novamente distraída pela beleza e exuberância das flores que me cobrirão. é chegada a hora de fechar os olhos, expor a pele ao sol e exalar novos aromas de doces alienações.


Posts Em Destaque
Verifique em breve
Assim que novos posts forem publicados, você poderá vê-los aqui.
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page